Hoje partilhamos uma reflexão da Dra. Joana Piçarra, sobre o trauma. O que o causa, como reagimos a ele, como nos impacta ao longo da vida, e o que podemos fazer.
O que é o trauma e como surge
De acordo com o testemunho de inúmeras vítimas de eventos traumáticos, abusos ou negligência, depois da criança passar por tais experiências dolorosas, pode surgir um desejo profundo de se sentir necessária, reconhecida e valorizada. Ao longo do seu crescimento, podemos encontrar uma dificuldade na criança, na capacidade de criar um padrão de relações de amor saudáveis que merece. Muitas vezes, quando essa incapacidade não é resolvida, o que pode acontecer é um padrão complicado e frustrante de autodestruição, violência, promiscuidade ou adição. Quando tal não ocorre, a criança pode mesmo assim manter uma parte sua ferida, com a qual evita contactar.
De acordo com o Dr. Bruce Perry (médico psiquiatra, membro da Child Trauma Academy nos E.U.A) existem experiências sensoriais impactantes, assustadoras ou de isolamento, de meros segundos ou suportadas ao longo de anos, que podem permanecer fechadas profundamente no cérebro. Contudo, à medida que vamos crescendo e que o nosso cérebro se desenvolve, absorvendo continuamente novas experiências, isto ocorre ao mesmo tempo que vamos atribuindo sentido ao mundo que nos rodeia, e essa interpretação tem por base momentos anteriores. O que nos aconteceu influencia a maneira como o nosso cérebro funciona. Cada pessoa desenvolve a uma visão única do mundo, moldada pelas suas experiências de vida.
Viver com o Trauma
Se enquanto crianças, fomos preparados para sermos excessivamente obedientes, qualquer tipo de confronto pode ser sentido como desconfortável, porque não houve espaço para a nossa voz, esta foi calada para podermos manter o comportamento que nos foi pedido. Daí que, ao abafarmos a nossa voz, possamos correr o risco de nos tornarmos alguém que tenta agradar aos outros, dizemos que sim aos outros, enquanto dizemos não à nossa voz, à nossa vontade única e individual, defendermo-nos, começarmos a deixar a nossa voz sair para fora, pode ser sentido como algo desconfortável.
Fazer algo novo, permitir dar mais espaço ao que pensamos, ao que sentimos, e revelarmos isso ao outro, quando tal não nos foi permitido no passado, pode ser um desafio.
Mesmo ao nível do nosso corpo, a resposta padrão do nosso cérebro à novidade é uma análise de avaliação, e até que a novidade se comprove como segura e positiva, será entendida como potencial ameaça.
Para a maior parte das pessoas o novo, o desconhecido pode ser uma das principais causas de ansiedade ou aflição. Quanto maior for a sensação de ameaça ou tensão, menos acesso temos à parte racional do nosso cérebro, o córtex.
Existem memórias de imagens, sons e cheiros que o cérebro registou no passado, e que ao encontrar uma ligação com elas no presente, podem gerar um comportamento de aflição, ansiedade ou pânico, muitas vezes a pessoa pode não ser capaz de encontrar conscientemente essa ligação, ou entender as causas para essa sua reação.
Seja no passado, seja no presente, perante a situação de trauma, a nossa visão do mundo sofre nesse momento uma alteração chocante. A ideia que tínhamos do que era seguro ou não para nós, deixa de nos fazer sentido. O cérebro regista esse impacto, e tentar criar uma rede de segurança interna para nos proteger.
O que podemos fazer?
Ainda hoje há muitas pessoas adultas que transportam imenso sofrimento da sua infância, e que ainda não lhe conseguiram dar um significado diferente da dor que ele evoca.
Há pessoas que nunca se permitiram falar dessa parte que guardam com muita dor. Algumas não falam porque acham que os outros não vão acreditar, outras chegam a falar com pessoas próximas que, ou não acreditam ou as aconselham a voltar a silenciar essa dor.
Perante o que aconteceu, a pessoa pode sentir culpa e vergonha, algo que as impede de partilhar o que viveram. Termos alguém que ouça a voz dessa parte ferida, que a respeite e repare a sua dignidade pode ser muito importante para que essa parte encontre alguma paz interior.